Risco jurídico: Os bancos têm muito a fazer para aumento da segurança jurídica
A segurança jurídica está em destaque no mercado de crédito imobiliário e no mercado imobiliário.
A falta de segurança jurídica tem forte impacto no spread bancário e inibe o apetite de investidores privados que querem aportar recursos para a produção de imóveis.
Para mitigar o risco jurídico do crédito imobiliário, é preciso estar atento aos sinais do mercado, mesmo quando parece não haver relação direta com essas atividades.
Em momento de muitos distratos, chama a atenção a visão recorrente de integrantes do Poder Judiciário de que isso poderia ter relação com a forma de os bancos concederem financiamentos.
Entre as causas dos distratos estaria o fato de os bancos fazerem ‘pré-aprovação’ do crédito no ato da aquisição do imóvel na planta, e depois negar o financiamento na hora da entrega do imóvel.
Como empresas imobiliárias fazem propaganda da possibilidade de se comprar imóveis sem comprovar renda e sem pesquisa cadastral, isso levaria à realização de negócios com pessoas sem condições de adquirir os imóveis.
Este questionamento, embora esteja mais relacionado às construtoras, pode induzir suspeitas quanto aos critérios dos bancos para aprovar créditos.
Afinal, as práticas dos bancos locais não se assemelhariam à adotada por bancos norte-americanos e que desaguou na megabolha imobiliária da década passada? É evidente que não.
Risco Jurídico
Neste artigo vamos tratar da importância de e criar ‘reforçadores’ para contribuir com as decisões dos juízes, além de produzir peças jurídicas específicas.
Entre os reforços estão transparência de ações e normas, comportamento ético, agilidade de respostas e ampliação do universo dos que têm conhecimento do mercado de crédito imobiliário, principalmente os integrantes do Poder Judiciário e a mídia especializada, além do público tomador de financiamento.
A história mostra que, quando algum tema se toma objeto relevante de embates jurídicos, não é boa prática apenas aguardar as decisões judiciais.
Pois o tempo de consolidar uma posição definitiva, no âmbito do Poder Judiciário, é quase sempre longo.
Do que resultam custos elevados para gestão, contestações e acompanhamentos, além da incerteza quanto às conclusões, inclusive em situações aparentemente óbvias.
O passar do tempo tende a ampliar as incertezas.
Identificada dificuldade de compreensão, falta de transparência ou interpretação distorcida de um texto legal aparentemente claro, é recomendável que o segmento afetado aja prontamente, propondo os ajustes necessários para estancar o fato gerador, sem que isso represente o reconhecimento de que havia irregularidade nos procedimentos adotados.
Exemplo risco jurídico
Um bom exemplo ocorreu no início da década de 1980 em relação ao conteúdo da letra ‘c’ do artigo 6º. da Lei 4.380/64 – “ao menos parte do financiamento, ou do preço a ser pago, seja amortizado em prestações mensais sucessivas, de igual valor, antes do reajustamento, que incluam amortizações e juros”.
No plano racional, a tese era surreal, mas milhares de ações judiciais foram impetradas contra instituições financeiras.
Alegava-se que o citado dispositivo legal determinava que, na evolução do saldo devedor, primeiro se deveria deduzir a amortização resultante do pagamento das prestações para só depois corrigir o valor da dívida.
Questão estapafúrdia, cujo desfecho favorável aos bancos era praticamente certo, mas passaram quase 30 anos até que o assunto fosse resolvido pela Súmula 450 do STJ, de 21/6/2010.
Esta ratificou regra elementar da matemática financeira: “Nos contratos vinculados ao SFH, a atualização do saldo devedor antecede sua amortização pelo pagamento da prestação”.
Até ali, milhões de reais foram despendidos pelas instituições financeiras para contestar as ações.
Se, tempestivamente ao surgimento da polêmica tivesse tomado a iniciativa de tornar clara a Lei 4.380, deixando explícito o enunciado da Súmula 450, os novos contratos não seriam objeto de contestação e a perlenga se limitaria ao estoque de contratos existentes.
A alteração não teria modificado a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Igual raciocínio se aplica ao imbróglio da capitalização de juros, discutida a partir dos anos 1980 e só equacionada pela Lei 11.977/2009.
Reclamações dos clientes
No mundo corporativo, além do marco regulatório é desejável a estratégia de utilizar as reclamações dos clientes como ‘consultoria gratuita’:
- o reclamante não deve ser tratado como ‘adversário’, mas como ‘parceiro especial’ que ajuda a identificar as causas da insatisfação.
Reclamações se transformam em subsídios para inovações e mudanças, com vistas à satisfação dos clientes e garantia de longevidade da empresa e de seu portfólio de produtos/serviços.
Sem prejuízo do rigor na elaboração das peças jurídicas que subsidiarão as decisões do Poder Judiciário, é recomendável que instituições financeiras e empresas da construção civil não encarem o reclamante como ‘inimigo a ser vencido’.
Cabe ‘olhar para dentro’, avaliando o que pode ser alterado para melhorar a transparência, a segurança e a eficiência de produtos e processos. Busca-se, assim, mitigar os riscos de novas e recorrentes discussões judiciais.
Mesmo em reclamações fruto de oportunismo ou da tentativa de dificultar a realização da garantia, é desejável adotar rotinas permanentes para avaliar o que pode ser feito, interna e externamente, para evitar novas ocorrências desse tipo.
Normas, condutas e procedimentos éticos e transparentes, associados a leis modernas, claras e objetivas, servem como reforçadores para decisões judiciais.
Contribuem, assim, para maior segurança jurídica, aumentando a probabilidade de que a decisão proferida esteja de acordo com a lei e em sintonia com as normas que serviram de base para a estruturação e a precificação do serviço/produto.
A probabilidade de equivalência entre normas e sentenças tende a guardar relação direta com a quantidade e a qualidade de reforços que os juízes recebem para decidir.
Isso contribui para maior segurança jurídica e para promover flexibilidade e modernidade ao arcabouço jurídico.
Um segmento que consegue construir uma imagem de respeito às leis, de ausência de propaganda enganosa, de compromisso e garantia da qualidade de seus produtos e serviços e de respeito aos seus clientes, propicia reforço à atividade judicial.
Amplia-se a probabilidade de que as decisões estejam em sintonia com as normas e as leis que regem a matéria em discussão.
Mas o inverso é ainda mais verdadeiro e tem poder de ‘contaminação’: se num determinado setor há muitas empresas avessas à transparência na relação com seus clientes, o reforço é negativo.
Nessa hipótese, cresce a probabilidade de o juiz decidir de forma divergente das leis e das normas, resultando em decisões desconectadas das leis/normas/contratos.
Divulgação de produtos e serviços
A questão dos ‘reforços’ eleva a importância de os agentes econômicos estarem atentos quanto a correta divulgação de seus produtos e serviços, inclusive junto aos integrantes do Poder Judiciário, além de obrigar as entidades de classe a ficarem atentas quanto a eventuais desvios de conduta dos associados.
É o caso de propaganda agressiva de venda sem exigência de com provação de capacidade de pagamento e análise cadastral.
Sem esclarecimento ao Poder Judiciário, há o risco de que significativa parcela dos distratos tenha origem na falta de transparência e em propaganda enganosa.
Só na aparência esse fato não tem correlação com as atividades das instituições financeiras.
Há, de fato, um risco de efeito contaminação, conjugado com a falta de clareza em relação às diferenças entre as modalidades Plano Empresário e Financiamento do Imóvel na Planta.
Isso sugere que os bancos, via Abecip, mantenham e ampliem os canais de comunicação para divulgar mais detalhes das características dos produtos e dos processos operacionais.
Veja mais:
Financiamento de Imóvel na Planta ou Plano Empresário
Análise de risco e capacidade de pagamento
E que as entidades do setor da construção esclareçam ao Poder Judiciário que o comportamento leniente em relação à capacidade de pagamento e idoneidade cadastral é um ponto fora da curva, irrelevante em proporção ao volume de negócios e fator não determinante de distratos.
No que tange às instituições financeiras, a questão da leniência em relação à avaliação do comprador de imóvel e a indeferimentos de pedido de financiamentos, cabe esclarecer dois pontos ao Judiciário e à sociedade:
- os critérios rigorosos para apuração da capacidade de pagamento e análise de risco de crédito;
- a ausência de pré-aprovação de financiamento no momento da venda, seguido de nova análise na entrega do imóvel.
Os requisitos para aprovação de financiamentos devem ser transparentes para o Poder Judiciário, para a mídia especializada e para o público em geral.
Cabe às instituições financeiras demonstrar o rigor técnico com que o assunto é tratado, evitando que ‘soluções inadequadas’ agravem o problema do acesso a moradia.
A questão não diz respeito às estratégias as instituições financeiras, mas é regulada Pelo Banco Central (BC), principalmente pela Resolução 4.271 de 2013.
Para garantir a qualidade e mitigar riscos sistêmicos,o regulador definiu os princípios que devem reger a originação de operações de crédito imobiliário:
- Verificação efetiva da renda e de informações financeiras, inclusive com implementação de linhas de defesa destinadas a mitigar os riscos de fraudes, não se permitindo aceitação de renda informal ou meramente declarada, isso para valores acima do limite de isenção do imposto de renda.
- Cobertura apropriada dos encargos da divida e avaliação realista da capacidade de pagamento, considerando todo o fluxo de pagamento e o valor do encargo total e, também, avaliando a sensibilidade da evolução da renda frente ao indexador da dívida.
- Além disso, deve-se levar em conta o endividamento já existente (renda disponível).
- Isso afasta o risco de calcular a capacidade de pagamento pelo menor valor do encargo mensal, na hipótese de adotar sistema de amortização com prestações crescentes, além de evitar a concessão de financiamento a quem já tenha a renda comprometida com outras dívidas.
- Adoção de razões LTV (loan-to-value) apropriadas e gerenciamento efetivo da avaliação das garantias, determinando que a avaliação do imóvel seja feita por profissionais qualificados e com aplicação de critérios técnicos adequados e que esses profissionais não estejam diretamente subordinados à área responsável pela originação do crédito.
- Deve-se observar a relação dívida/garantia, para se precaver contra eventuais flutuações negativas nos valores dos imóveis.
Nas operações de crédito imobiliário, a análise da capacidade de pagamento e do risco de crédito vai muito além da pesquisa cadastral e do cálculo da relação prestação /renda.
As instituições financeiras costumam utilizar um modelo de credit scoring, para discriminar os solicitantes de crédito, conforme o risco de inadimplência.
Analisam variáveis contábeis, mercadológicas e comportamentais, para emitir opinião sobre a capacidade de pagamento do cliente.
Não cabe a hipótese de que, deliberadamente, contribuam para a realização de negócios em que o comprador não esteja apto a adquirir o imóvel, abrindo caminho para futuros pedidos de distrato.
Conclusão
Parte relevante das discussões judiciais e o agravamento do risco jurídico no crédito imobiliário advém da falta de conhecimento e de compreensão das regras de funcionamento e da estrutura complexa do mercado imobiliário e do mercado de crédito imobiliário.
Investir na ampliação do conhecimento dos produtos e processos desses segmentos contribuirá para reduzir a insegurança jurídica.
Teotonio Costa Rezende
Mestre em Gestão e Estratégia de Negócios
Especialista em Crédito Imobiliário e Política Habitacional
Fonte: Revista do SFI – ABECIP